terça-feira, 19 de agosto de 2014

Gravação da voz

Em 1902, na monografia alemã sobre Care and Usage of Modern Speaking Machines (Phnograph, Graphophone and Gramophone), Alfred Parzer-Mülhbacher prometia que os grafófonos seriam capazes de construir "arquivos e colecções" para possíveis "memórias". Amigos ou familiares falecidos ficariam com as suas vozes registadas em cilindros, que transportariam para todo o futuro os dias felizes da juventude desses entes queridos. O cinema representava o olhar sem o corpo, o telefone a voz sem corpo, o gramofone arquivaria a voz humana. Telefone e gramofone cruzavam-se na transmissão (e memória) da voz.

Em 1916, Salomo Friedlaender escreveu Goethe Fala para o Fonógrafo, no qual o professor Abnossah Pschorr se propôs refazer a voz de Goethe estudando o seu crânio e a linha da sua faringe. O pedido seria feito por uma jovem e ingénua estudante do professor, Anna Pomke, com o qual casaria no final da história: "se o fonógrafo existisse em 1800, poderíamos gravar a voz do mestre".

A voz tornava-se imortal, como se escreveu em 1877 na Scientific American, quando Edison inventou o fonógrafo. Para isso, eram precisos o microfone e o amplificador com válvulas electrónicas (Lieben, 1906; De Forest, 1907), na electrificação do gramofone. Em 19 de Maio de 1900, Otto Wiener apresentava uma conferência sobre a extensão dos sentidos através dos instrumentos, 64 anos antes de McLuhan escrever sobre isso.

O fonógrafo, segundo Edison, seria usado para ditar, dar testemunho no tribunal, discursos, reprodução de música vocal, ensino de línguas, distribuição de canções. Para assegurar a  a realização destas possibilidades, Edison mandou representantes à Europa e recolheu registos do primeiro ministro inglês Gladstone, de Bismarck e de Brahms na Alemanha. Em 1897, a Alemanha já registava sons em cilindro. Ernst von Wildenbruch escreveu um poema para ficar registado: For the Phonographic Recording of his Voice. Graças ao fonógrafo, pela primeira vez a ciência possuía uma máquina que gravasse ruídos independentemente do seu significado.

Traduzo parcialmente uma ficha bibliográfica do livro de Friedrich Kittler, assinada por Alexander Magoun:

"A tese de Friedrich Kittler é bastante simples: «Os media determinam a nossa situação, o que merece uma descrição...» (p. xxxix.). E assim ele descreve os ambientes culturais em que a gravação de som, imagem e palavras tiveram lugar entre as décadas de 1860 e 1940. A gravação de som, o cinema e a máquina de escrever, tecnologias definidas em Kittler, mudaram a linguagem da percepção. Ao alterar a linguagem e o comportamento das pessoas que os utilizam, as tecnologias construíram seus usos. Nesta abordagem, Kittler trabalha sobre a ênfase de Marshall McLuhan de «medialidade», descrições de Michel Foucault sobre as relações entre textos impressos e o controlo do corpo e seu próprio trabalho sobre a construção de leitores e famílias na época de Goethe. Aqui, Kittler aplica a análise do discurso dos media na época moderna. Ele define «cultura» através de textos sobre os efeitos do armazenamento de som, imagem e pensamento. A análise desses contos, poemas, cartas, memórias, artigos, comentários e outros tipos de discurso permite que ele defenda a determinismo tecnológico da cultura, se não a história. Os desconfiados das interpretações teóricas estão gratos pela relativa escassez do jargão. Por outro lado, os tradutores levaram vinte e sete páginas a explicar o fundo e as metas de Kittler para os não familiarizados com os debates pós-1960 sobre poder, linguagem e liberdade. Geoffrey Winthrop-Young e Michael Wutz reconhecem um conjunto de causas face às reacções negativas quanto ao método e à agenda de Kittler. Primeiro, Kittler não é um historiador de tecnologia ou de qualquer outra coisa. Ele é o «enfant terrible das humanidades alemães» (p. xxxiii), um pós-estruturalista que vê a história como ferramenta que derruba conceitos do eu. Kittler mistura material de diversa origem e de uma grande variedade de campos, um dos quais é a descontinuidade do desenvolvimento tecnológico. O resultado é um pastiche superficial de fontes secundárias, boatos, literatura e explicações técnicas. Em contraste com os seus estudos cosmopolitas, Kittler mantém uma admiração germânica pelos engenheiros, de Edison a Turing, e entrega-se a um «fetichismo virtual» (p. xxxv) das origens militares das tecnologias de comunicação. Ele justifica o seu escárnio do «chamado Homem» (p. xxxiii) para descrever a tendência das redes de digitalização e de fibra ótica que servem para reunir e reciclar todos os dados sensoriais. Finalmente, há o desafio da estrutura do livro e da escrita de Kittler. Cada tecnologia merece um longo capítulo em forma de narrativa, vagamente cronológica e que oferece poucas pausas ao leitor. Não há índice. Os tradutores fizeram um bom trabalho ao adaptar a complexidade das frases do autor para o inglês. Eles defendem o «gozo estilístico» de Kittler como pretendido «para atacar e chocar sensibilidades académicas convencionais» (p. xxxii), em especial os da tradição académica em que ele trabalha".

Leitura: Friederich A. Kittler (1999). Gramophone, Film, Tipewriter. Standford, CA: Standford University Press, pp. 55-85.

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