quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Memórias dos media

O pai de José Jorge Letria morreu quando ele tinha 16 anos. Prometeu à mãe dar menos atenção às guitarras e preparar-se para o curso de direito. Andou pela Faculdade, mas a música foi mais forte e enveredou por uma carreira que o levou a Paris e a outras andanças. Vicente Jorge Silva chegou ao quinto ano do liceu e fartou-se. Na Madeira, na esquina do café Golden Gate, ele via os passageiros que vinham de fora ou iam para fora da ilha. Para ele, esses viajantes vinham de mundos nebulosos ou estranhos para a terra, a existência, a vida. No caso de ambos, os percursos políticos são marcantes: José Jorge Letria da simpatia e militância no Partido Comunista para o Partido Socialista, Vicente Jorge Silva de social-democrata mais ou menos anarquista para deputado do Partido Socialista e abandono posterior.

Ambos apanharam a mudança de regime político em 1974 e fizeram opções políticas, eles que já estavam engajados social e culturalmente. O percurso de José Jorge Letria levou-o a Paris, ao contacto com a música de José Mário Branco, à descoberta e companhia de José Afonso e Carlos Paredes, à cumplicidade com José Barata-Moura. Eles eram os músicos que começavam a ser conhecidos mas marginalizados pela política vigente em 1968 e anos seguintes, até à explosão de 1974, momento a partir do qual os músicos receberiam muitas solicitações mas se separariam, consumidos pelas fracções partidárias. José Jorge Letria, entretanto com família constituída, tornara-se jornalista, percorrendo o Diário de Lisboa, o República, o Musicalíssimo, o Diário de Notícias e o Diário. Depois, viria o pelouro da cultura na Câmara Municipal de Cascais e a direcção da Sociedade Portuguesa de Autores.

Vicente Jorge Silva começara, depois de paragens em Londres e Paris, à procura de entrar num curso de cinema, por explorar uma agência de publicidade até que apareceu o Comércio do Funchal, o jornal cor-de-rosa que vendia e quase não tinha problemas com a censura apesar de muitos artigos censuráveis pelo regime político. Mudado o regime, surgia a oportunidade de começar a "Revista" do Expresso, ao lado de nomes como António Mega Ferreira e Teresa Schmidt. Era uma divisão de poderes: o director Marcelo Rebelo de Sousa, que se seguira a Francisco Pinto Balsemão, o proprietário que fora para primeiro-ministro, ficava com o primeiro caderno do Expresso, Vicente Jorge Silva com a revista. Depois, já em 1990, nascia o Público, o melhor diário ainda hoje publicado em Portugal. O seu fundador e primeiro director manter-se-ia seis anos no lugar e, entre muitas coisas, foi conhecido por caracterizar a juventude como geração rasca, por atitudes então tomadas.

De José Jorge Letria, retenho a escassa informação que dedica à rádio (e alguns aspectos da música), caso do suplemento "Mosca" do Diário de Lisboa e da designação nacional-cançonetismo, cunhada por João Paulo Guerra sobre os cantores do Centro de Preparação de Artistas da Rádio da então Emissora Nacional (p. 76). Mas também a referência a Manuel Jorge Veloso, crítico e músico de jazz e director do repertório de jazz da Sassetti (p. 93), as 24 pistas de gravação no estúdio moderno de Paris (p. 94) para o disco lançado e logo apreendido em 1972 (p. 96), o exemplar do disco de José Afonso com a faixa "Grândola" que tocou no programa Limite na madrugada de 25 de Abril de 1974 e foi uma das três senhas na rádio para o avanço dos militares em revolta (p. 155) e o debate sobre música ligeira e música erudita na Emissora Nacional com Luigi Nono (p. 182).

De Vicente Jorge Silva, fico com a sua grande erudição, mesmo que não tenha sequer completado o curso liceal, nomeadamente na literatura e no cinema (e da prática deste). As páginas sobre jornalismo e, em especial sobre o Público, merecem ser lidas e discutidas pelos meus alunos, pois são de uma grande densidade conceptual e prática. Projecto que custou três milhões de contos - uma quantia fabulosa e que creio que não se repetirá -, o seu director procurava alterar a ideia de ciclo de informação semanal a que os leitores do Expresso estavam habituados (p. 155), mas isso não aconteceria. A televisão fornecia essa informação e o Expresso continuava a ser lido ao sábado, fornecendo mais detalhes e profundidade. Fala também da importância do design do jornal e da fotografia (p. 153), da necessidade de uma maior cobertura internacional (p. 151), do caderno local em Lisboa e no Porto (p. 146), da gente nova que nunca tivesse trabalhado em jornais para ingressar no Público (p. 147).

Eu gosto de biografias ou autobiografias, já o escrevi aqui mais de uma vez. Elas narram histórias pessoais, remetem para tempos precisos. Mas não posso esquecer que as biografias são também ajustes de contas do biografado consigo mesmo e as personalidades com que trabalharam ou se relacionaram. Os autores são já sexagenários e preparam a sua posição na História. José Jorge Letria fala dos antigos companheiros comunistas com mágoa ou preocupação, Vicente Jorge Silva nomeia Francisco Pinto Balsemão (proprietário do Expresso), Belmiro de Azevedo (proprietário do Público) e José Manuel Fernandes (anterior director do Público).

Leituras: José Jorge Letria (2013). E Tudo Era Possível. Retrato de Juventude com Abril em Fundo. Lisboa: Clube do Autor, 287 p.
Isabel Lucas (2013). Conversas com Vicente Jorge Silva. Lisboa: Temas e Debates/Círculo de Leitores, 261 p.