sexta-feira, 10 de agosto de 2007

SOBRE O PLÁGIO


1. Uma das desvantagens da internet é o esquecimento. Procura-se um tema no Google, chega-se a um texto, faz-se a busca num outro e outro textos.

Guardam-se ficheiros sem indexar títulos, autores e datas. Unem-se, com corte e cola, como se fosse um ready-made à Marcel Duchamp. Perde-se a origem, dá-se começo a um novo texto. Mas as frases, os tempos dos verbos e os sujeitos estão lá, continuam a ter uma origem remota. Se a frase for citada de frase citada de frase original há duas, três ou mais cópias de fragmentos de textos. Um texto fabricado com origem na internet é como a conversa em torno de um tema ou acontecimento, num dia e em vários locais e com várias pessoas: a originalidade em cada um dos sítios é escassa. Mas é muita, simultaneamente, porque cada indivíduo olha o tema de um ângulo específico.

Uma frase, uma página, uma ideia – será que pertence(m) a um autor? Por isso, a acusação de plágio a alguém pode apanhá-lo de surpresa, perguntando: "mas copiei o quê? Há hipóteses de me redimir e voltar a escrever"? O juíz tem um espaço curto para a decisão. Porque a sua decisão, por justa que possa parecer, pode criar mais injustiças. A copiou uma vez e é punido, B já copiou algumas vezes mas nunca foi detectado. O juíz pode ser um moralista com pecados mais pesados. Mas a sociedade deu-lhe essa legitimidade.

2. O espelho na água e a sombra do sol no indivíduo ou no edifício parece o princípio da cópia. Não existe na realidade, mas parece um duplo. A cópia é o que é análogo, imitado, copiado. O pintor renascentista retomava temas, feitos por ele próprio, da escola a que pertencia ou porque recebia outra encomenda sobre a mesma matéria. Quantas vezes o compositor romântico pegou nas melodias populares e as adaptou às suas harmonias? Curioso, o que é analógico é mais facilmente copiado pelo digital, quando este pretende ser puro e distinto daquele. A criança aprende por imitação – às vezes agarra-se a uma frase e repete-a sem cessar, porque lhe descobre uma sonoridade. Na sociedade de massa, os consumos seguem comportamentos. Compramos uma marca porque está na moda e entramos num círculo pessoal se adquirimos essa marca.

A natureza copia-se permanentemente, em forma de ciclo; isto é, repete-se. Todos os dias, o Sol nasce. Todos os dias precisamos de nos alimentar. Um período escolar é a repetição de gestos, acções. O percurso de ida e volta casa-emprego aborrece-nos, em especial quando encontramos uma fila de trânsito. Já as conversas intermináveis que temos com amigos e familiares agradam-nos, mesmo que desponte uma incompreensão ou desarmonia.

O eco é um sinal que retorna porque embate numa superfície. O que no concerto rock é aumentado pela amplificação. Quando queremos que a nossa voz seja mais forte – ou atinja um ponto mais longínquo – juntamos as mãos em volta da boca, como se fosse um funil ou megafone. Na publicidade, usam-se a iluminação e os espelhos para adequar a luz actual, se se filma em exteriores. Quando atravessamos uma alameda, indo de automóvel, há uma harmonia de sons resultante do ruído do motor, da deslocação do automóvel e do eco nos troncos das árvores. O vento é um propagador do som: um foguete de festa, o levantar vôo de um avião, uma conversa, chegam-nos com mais pormenor se a direcção do vento for favorável. Estamos no domínio da transmissão e da sua recepção.

3. As tecnologias electrónicas de reprodução levaram tal prática da cópia mais longe. Com a digitalização, as cópias são gémeas, nada as distingue. A partilha de ficheiros é o estádio mais recente e puro desse ideal de cópia e de semelhança.

O trabalho científico ressente-se disso. Por um lado, as cópias permitem acesso, como lembrou Benjamin quando escreveu sobre a perda da aura com a reprodução técnica (na fotografia, no cinema). O quadro num museu inacessível passou a estar disponível no ecrã, com explicações, comentários e críticos. Por outro lado, a cópia elimina a origem. Como disse atrás, a procura na internet faz-nos esquecer as ligações, o começo. Muito menos nos preocupa a propriedade das ideias. Há uma espécie de democracia de acesso e direito a usar as ideias. Hoje, toda a gente pesquisa na internet. Como se isso desse o direito a utilizar a informação produzida por outro. Existe uma atitude de quase despeito se se chama a atenção para o erro de plagiar.

Encontra-se um lado defensável. Com o correr do tempo, uma ideia original é partilhada. O indivíduo dá um contributo, uma inovação, por exemplo; a sociedade convida o indivíduo a partilhar a sua ideia. Com os anos, os direitos de um autor cessam, o seu património passa para a sociedade. O que significa que o trabalho colocado na internet é universal e legalmente acessível por todos. Mas deve mencionar-se o ponto de partida. O link (a ligação) existe para isso. Não o cumprir, é desrespeitar, é tomar por sua a propriedade de alguém.

O indivíduo copia, mas também se copia. Caso de um músico de capacidades limitadas. Os acordes, as músicas que escreve, são em número reduzido – ele passa a vida a repetir-se. O mesmo acontece ao pequeno escritor. Claro que um burocrata faz o mesmo ao longo da vida, mas não se preocupa com isso. Acha-o natural, como a Terra à volta do Sol. A literatura dá-nos exemplos dessa rotina, desse vaivém quase sincronizado, como Steinbeck, como em O inverno do nosso descontentamento, em que o merceeiro passa pela rua a caminho do emprego sempre à mesma hora, como se estivesse cronometrizado. Ou igualmente com o filósofo Kant, de casa para a universidade, durante décadas seguidas. Ou ainda com o cinema de João César Monteiro, em Vaivém.

Uma ruptura estética perde o seu valor quando a sociedade em geral recupera as qualidades dessa ruptura e a integra nos valores dominantes. Estamos no domínio das formas. Uma autoestrada ou um aeroporto são do domínio do equilíbrio, do previsível, do plano. Os objectos que nela se deslocam ou poisam têm um comportamento similar, pois o contrário redunda em acidente.

4. Ora, com a internet, há outro espaço. Tornamo-nos demiurgos, criadores. Mesmo que o objecto que criamos não seja nosso. Como o ficheiro está ali à mão e não tem quem o reivindique, é como se fosse nosso. Possui o mesmo valor que o ar, está disponível. Não precisamos de pagar por ele. Mas pergunto – não precisamos mesmo de pagar pelo valor disponibilizado pela internet? Ou, então, o que copiamos já não tinha valor antes da cópia?

2 comentários:

MCA disse...

Uma reflexão muito, muito interessante. Vou plagiá-lo! Mentira, eu faço o link... :-)

Anónimo disse...

Uma das desvantagens da internet é o esquecimento?

A partilha de ficheiros é o estádio mais recente e puro desse ideal de cópia e de semelhança.
Puro? Ideal? Puro ideal?

Ou, então, o que copiamos já não tinha valor antes da cópia?
Se "já não" tinha, passou a ter. Se "passou" a ter, já tinha.
Se foi copiado, é porque algum valor tinha...
Se "já não" tinha valor, para quê ou porquê copiá-lo?