domingo, 23 de julho de 2006

MEMÓRIA E GUERRA

Escreve hoje Mário Mesquita na sua coluna do Público: "o Governo Zapatero tarda a publicar a Lei da Memória Histórica, prometida para o passado dia 18 de Julho, em que perfizeram 70 anos sobre a rebelião de Franco contra a II República". Razão: a transição pacífica de regime na Espanha pós-franquista levou à instalação de um pacto de esquecimento capaz de "exorcizar a memória dos combates, dos massacres, da violência". Durante o mês de Maio de 1977, em trabalho de reportagem em Espanha, o jornalista e professor universitário observara essa transição. Agora, no momento da passagem dos setenta anos do começo da sangrenta guerra civil que se abateu sobre o país vizinho, é tempo de trazer à memória os factos e as consequências desse período. Conclui Mesquita que "Legislar sobre a memória não parece deste mundo".

"Estão dispostos a perdoar, mas não a esquecer" - eis o lead de uma página do El Pais de hoje, exactamente a propósito da Lei da Memória Histórica, em que os antigos presos políticos pedem que seja reconhecida a sua tragédia. E descendentes de antigos combatentes querem saber onde estes foram enterrados, para lhes prestarem uma última homenagem. Para além de uma reparação moral das represálias que atingiram filhos e netos dos antigos combatentes.



Estas histórias de esquecimento e memória ocorrem num momento em que o Líbano passa por momentos dramáticos: uma guerra com Israel. Na quinta-feira passada, Timothy Garton Ash, no Guardian, escrevia sobre a nova desordem multipolar (traduzido para castelhano na edição de hoje do El Pais). Ash entende que, até à queda do império soviético, se vivia numa ordem bipolar - ou se era a favor dos americanos ou dos soviéticos. A guerra fria teve este embate bipolar como centro da sua ideologia. Apesar do confronto permanente, havia uma verdade - um lado contra o outro. Após a queda da União Soviética e do muro de Berlim, e com os avanços económicos da China e da Índia e o crescimento do movimento radical muçulmano, deixou de existir a certeza bipolar. Assim, vive-se hoje numa desordem multipolar mundial.

Para além do (res)surgimento económico de Estados (Brasil, China, Índia, Rússia), cujos recursos energéticos concorrem com os das economias ocidentais, surgem outras tendências. A primeira é a do poder crescente de actores não estatais, e que vão desde ONGs como o Green Peace até movimentos radicais terroristas como o Hamas, o Hezbolá e a Al-Qaeda. Uma segunda tendência aponta para as tecnologias: os avanços tecnológicos, em especial nas indústrias do armamento e na violência, chegam a pequenos grupos, que podem espalhar o terror com meios reduzidos, e que conduziram aos acontecimentos das Torres Gémeas em Nova Iorque, e nos transportes em Madrid e Londres.

A multipolaridade é um conceito que tem vindo a ganhar consistência desde 2003, quando Chirac, o presidente francês, disse que isso era positivo. Mas, reflecte Ash, ele não se referiu a ordem ou desordem multipolar. E o que parece estar a acontecer é exactamente essa multipolaridade sem ordem, o que impossibilita o reconhecimento rápido e seguro dos vários agentes sociais envolvidos numa questão. Muitos são secretos ou actuam a mando de outros. Ash aconselha prudência: se a multipolaridade é melhor que a bipolaridade, as democracias ocidentais têm sérios problemas em lidar com essa desordem multipolar. A guerra no Líbano é um exemplo dessa incapacidade de lidar com o novo modelo.



A formação e manutenção da opinião pública passa por um conhecimento o mais perfeito do mundo de desordem multipolar. Em que os jornais continuam a ter uma grande importância. Conhecer a geografia do Médio Oriente, quem são os povos que os habitam e a sua história antiga e recente, as suas religiões e tipos de Estado, resultam de cultura geral mas, também e cada vez mais, da leitura atenta do que os jornais fornecem.

Encontro um exemplo no Observer de hoje: um dos textos descreve a importância da comunidade xiita no mundo árabe (10 a 15% do total de 1,4 mil milhões de árabes), confortada pela queda do poder sunita no Iraque (apesar de minoritário) e pela agenda política e de apoio do regime do Irão. Um texto assinado pelo editor do Daily Star, de Beirute, confere outra perspectiva - apesar de não evidente no texto, há uma assunção crítica sobre o Hezbolá, apesar do momento ser de unidade. O importante, diz, é que os árabes lutem pela sua terra, dignidade e esperança num mundo melhor para os seus filhos. E outros textos, embora também não evidentes (não tendenciosos), apontam na perspectiva de defesa dos israelitas. Sem esquecer a minoria cristã libanesa, que ontem teve o seu primeiro grande susto, com a destruição de antenas de televisão e telemóveis na sua área residencial.

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