quarta-feira, 30 de março de 2005

As meninas dos telefones

Fernanda de Castro (1900-1994), reputada romancista e mulher de António Ferro (ideólogo do Estado Novo), fez publicar um artigo com este título na primeira página do Diário de Notícias, a 7 de Julho de 1929. Os belíssimos desenhos pertencem a Bernardo Marques, numa dada altura vizinho do prédio de Fernanda e António, quando aquele estava casado com Ofélia (José Gomes Ferreira, pertencente a um outro quadrante político que não o do casal Ferro, também viveu no mesmo edifício, o que tornava este um pólo de forte atracção intelectual).

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Para Fernanda de Castro, a telefonista "tem de desenvolver-se numa atmosfera de manivelas, de botões eléctricos e de alavancas, sob um céu metálico onde o sol não rompe nunca, nem mesmo neste claro mês de Julho". As telefonistas, como as outras raparigas, queriam o sol, o amor, as alegrias, "um certo vestidinho que viram em certa montra, para agradar a certos olhos queridos, certos perfumes, certas jóias que as fariam lindas e que todas desejam num impossível desejo; querem - pois têm apenas 20 anos! - quereriam sair dali para fora, fugir à rede dos fios telefónicos e vir procurar, à luz do sol, sob o céu que Deus fez para todos, o magro quinhão do sonho".

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Mais à frente, no texto, Fernanda de Castro escreve: "- Está lá? Está lá? ... Não, não está, a menina do telefone foi atrás das vozes que dirigiu para Londres, para Berlim, para Paris; foi também viajar. Não fez as malas, não tomou o sud-express, não pôs os pés em nenhum transatlântico, não subiu em avião, mas já vai muito longe, já atravessou duas ou três fronteiras, já passou por duas ou três alfândegas".

"Pobres meninas dos telefones - continua o seu texto da primeira página do Diário de Notícias ainda em formato broadsheet -, que são as únicas meninas de Lisboa que não podem namorar ao telefone".

fernandacastro4.jpgMas o telefone da escritora toca: "Largo esta folha de papel e pego no auscultador. Uma voz amiga atravessa o espaço e vem até mim. De repente, o silêncio, a ligação cortada, o vácuo, a distância. Chegou a minha vez:
"-Está lá? Está lá?
"Nada. Ninguém.
"- Que grande pouca vergonha! Isto não pode continuar... Ah, estas meninas dos telefones! Amanhã faço uma queixa à Companhia...
"E, logo a seguir, depois deste desabafo, pego na pena e, com uma perfeita boa fé, assino esta crónica".

Uma pequena pérola estética esta página do Diário de Notícias! Até o itálico do texto, em contraste com a letra do resto da página, era uma nota de distinção. Vivia-se num tempo em que a literatura ainda abraçava o jornalismo (e em que, simultaneamente, António Ferro começava a brilhar nesse jornal com entrevistas feitas a líderes internacionais identificados com regimes autoritários e ditatoriais).

Nota: em Agosto de 1930, era inaugurada a primeira central telefónica automática (já sem recurso a telefonistas), na Trindade, em Lisboa, junto ao actual teatro.

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