sexta-feira, 29 de outubro de 2004

A CONSPIRAÇÃO DE BETTENCOURT RESENDES

A minha colega Cristina Ponte (da Universidade Nova de Lisboa) costuma dizer que as notícias se devem ler tendo em conta a página em que se inserem. Para ela, há uma espécie de contaminação entre as notícias escolhidas pelo editor. Eu, que num dado momento da minha vida profissional, fazia recortes das notícias para fazer chegar aos directores da empresa onde trabalhava (ainda não conhecia o termo clipping), não acreditava nessa condição de contágio das notícias. Porém, mais tarde, desenvolvi o conceito de campo de notícia, que fui buscar emprestado a Pierre Bourdieu (que lhe chamava campo jornalístico), e dotei de vida própria a ideia (não a posso desenvolver pois o texto ainda não foi publicado). Nessa altura, passei a compreender o que Cristina Ponte queria dizer.

Vem isto a propósito do Diário de Notícias, agora que Fernando Lima e a sua equipa deixaram de figurar no cabeçalho do jornal. Na mesma primeira página, a administração dá conta da nomeação, a título interino, do director José Manuel Barroso. Cortando com a ideia recente de editoriais não assinados, o recém-nomeado escreve: “noticiar o que tem de ser noticiado, de uma forma honesta, sem querer causar danos a ninguém, mas sem temer desafiar quem quer seja – em nome da verdade que deve ao leitor”.

Todo o resto do editorial é de ler com atenção. Parece-nos que ao jornal vai ser devolvida a sua faceta de diário de referência. Contudo, salto para a página 7, uma das mais interessantes páginas do jornal, a cortar e a guardar. Dos três colunistas, dois deles são exactamente os homens fortes do Diário de Notícias, os que as notícias destes dias atribuem a origem das transformações no jornal: Mário Bettencourt Resendes e Luís Delgado. O texto deste último vem na sequência de outros que tem publicado, onde aborda a situação nos Estados Unidos e as próximas eleições naquele país.

O texto de Bettencourt Resendes é, contudo, muito mais interessante. A começar no título: “A grande conspiração”. Os meus olhos até cresceram, como se vê nas personagens dos filmes de desenhos animados. Glup, disse eu, imitando um desses bonecos no celulóide ou no digital. Ele, Resendes, ia falar sobre a situação dos últimos dias no jornal. Ia apresentar a sua perspectiva do convite a Clara Ferreira Alves para dirigir o jornal e porque é que Fernando Lima já não interessava à frente do mesmo matutino.

Mas não. Quando ele escreve sobre um acontecimento há uma dezena de anos, do já falecido Vítor da Cunha Rego e da sua propensão para a conspiração, fiquei contextualizado. Depois, fala numa marretada de Marcelo Rebelo de Sousa, na economia frágil e em outras coisas que já esqueci. Não, ele não falou do seu convite a Clara Ferreira Alves.

Pergunto: é possível um agente social – interveniente em facto de primordial importância para o jornal, que causou, entre muita outra perturbação, a nota da administração na primeira página do jornal de hoje – ignorar tudo e falar de outra coisa? Não é meter a cabeça na areia, ou assobiar para o ar, como se o que aconteceu nada tivesse a ver com ele?

Escrevo aqui, pois nada me adiantaria fazê-lo para o provedor do leitor, ao qual estão vedados comentários sobre os artigos dos colunistas. Bettencourt Resendes é simultaneamente jornalista, administrador e colunista. Por mera coincidência, o seu espaço no jornal chama-se Coluna sem nome. E a sua responsabilidade social também não tem nome?

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