quinta-feira, 8 de julho de 2004

RADIOAMADORES E RADIODIFUSÃO

O texto de hoje procura reflectir uma realidade já longínqua do nosso conhecimento mas muito curiosa: o mundo das ondas hertzianas, como ainda se falava há anos, isto é, a actividade da rádio, em duas vertentes: o radioamador e o radiodifusor. Com a particularidade de eu juntar dois mundos diferentes: o brasileiro e o português (este também visto por espanhóis). Para mim, resultou numa mistura feliz. É só acompanhar o texto.

1) Radioamadores

"Todos os que se interessam pelo rádio conhecem o papel admirável dos amadores no desenvolvimento dessa ciência. [...] Constantemente, há sempre uma pessoa, muitas pessoas, diante de sua pequena emissora, interrogando o espaço. É a isso que eles, na sua linguagem figurada, chamam de «corujar». Um italiano do Brás ou do Belenzinho
diria: stregare... Seu número no mundo inteiro é incontável. Em São Paulo, os radioamadores montam a centenas.
"Por isso, todas as noites, o céu sereno ou tempestuoso é cruzado pelos diálogos que se travam entre os pontos mais afastados do planeta.
"- Quien habla?
"- É (vem uma série de letras do alfabeto) São Paulo Brasil. E aí?
"- Zeta, cota, ix Valparaiso... Chile...
"- Ah! Sim... Que tempo está fazendo no Pacífico?
"- Muy lindo. Y alli?
"- Garoa. Compreende?
"- Si, señor; nosotros tenimos la garua. Es lo mismo...
"E a conversinha prossegue nesse tom. Termina:
"- Boa-noite.
"- Buenas noches.
"Depois, o «coruja» paulista faz uma chamada geral. Chamada geral! Chamada geral! Quem deseja falar com São Paulo? Prefixos perdidos se cruzam no éter. São estações do país, da Itália, da Dinamarca, da França, dos Estados Unidos, da Rússia, da China, do inferno. Todas as línguas que se falam na terra fazem-se ouvidas. Homens, mulheres, crianças. Vozes cristalinas, vozes roucas, vozes de falsete. São os «corujas» do universo.
"Os radioamadores constituem uma família internacional. O ministro, o advogado, o operário, o poeta, diante de uma caixa, tratam-se com intimidade. É você para cá, você para lá. Um sujeito de Cantão pergunta a outro de São Paulo:
"- Sua filha Araci já está melhor da gripe?
"Um de São Paulo pergunta a outro de Belveder:
"- Você gostou do weekend em Diamante?
"- Quem lhe falou do nosso passeio?
"- XPLK, de San Juan, Argentina...
"Tudo gente conhecida, íntima. O sobrenome dessa família é constituída por prefixos. IJPXM interessa-se por WSVH. E lá, como aqui, esses «corujas» dedicam-se de corpo e alma aos seus aparelhos. Fazem estudos especializados. E comunicam mutuamente as suas descobertas. É aos amadores que o rádio deve, em boa parte, seu progresso nos últimos tempos [...]".

Leitura: Afonso Schmidt (2003). São Paulo de meus amores. São Paulo: Paz e Terra, pp. 223-224. Reedição do original de 1954. As duas capas vêm a seguir:




2) Impresiones de un viaje a través de las emisoras portuguesas

"Aquí Ear-268 que llega a Portugal y se dispone a hablarnos de nuestros colegas CT1 entre quienes estuvo veinte días, que saturado de atenciones, obsequios y cariño, es portador para todos los EAR's de sus «saudacoes muito amigas, muito sinceras e muito leaes».
"[...] Recuerdo que uno (creo que el CT1-HD) al serme presentado me decía señalando su solapa, donde tenía el emblema de nuestra antigua asociacón «Soy EAR-HD, Hombre Diabo» - añadía -, pues los portugueses matizan sus indicativos com algo gracioso.
"En la frontera me esperaba CT1-ED, D. Hernani de Sá, propietario de una superestación en Matosinhos y otra en Covelinhas, que es una joya, y fué allí a donde nos dirigimos.
"[...] El receptor, muy lindo, com las lámparas, condensadores, etc., todo aisladamente blindado y empleando un sistema de conexiones con un hilo aislado y luego recubierto de una funda metálica en espiral con el objeto de que todas las conexiones hagan tierra y así no haya manera posible de tener inducciones en ningún lado. Tomad nota cómo se las gasta el amigo CT1-ED.
"Después me enseña su fabrica de Vino de Oporto, y al igual que su emisora, veo que aquellos lagares y recipientes subterráneos, de cemento y forrados de cristal por donde escurre un vino transparente y de color caramelo, indican una escrupulosidad y una perfección admirables".

Leitura: Boletín U.R.E. (Unión de Radioemisores Españoles), incluído em Radio Sport, 1933, nº 11 [a Radio Sport foi a primeira revista de rádio em Espanha].

3) CT1AA - o emissor do homem dos Armazéns do Chiado




CT1AA começou a emitir em 1924 (ondas médias) e deixou de o fazer em 1938 (ondas curtas; as ondas médias em CT1AA já tinham acabado em 31 de Março de 1934). No começo do regime da Ditadura e do Estado Novo, o emissor de Abílio Nunes dos Santos Júnior (1892-1970) transmitiu frequentes palestras dos ministros da Agricultura sobre a "Campanha do trigo", objectivo que visava tornar o país autosuficiente em matéria de cereais. Muitas vezes, havia um camião com um enorme altifalante estacionado na praça principal de uma vila ou aldeia ribatejana ou alentejana, para que, através das ondas da rádio, a população ouvisse a prelecção (ainda não havia receptores domésticos nessas paragens).

Numa carta datada de 23 de Janeiro de 1933, o director do jornal O Século, João Pereira da Rosa, escrevia para o Director de Serviços Técnicos dos CTT, em papel timbrado:

"Desejando o Século, a exemplo do que tem feito com os desafios internacionais anteriores, transmitir por intermédio da T.S.F. a informação relativa ao encontro de foot-ball entre as selecções representativas de Portugal e da Hungria, que se realiza no próximo domingo, 29, solicitamos de V. Exa. a fineza de autorizar que o posto emissor C.T.1A.A. possa funcionar no próximo domingo, das 15 às 18 horas, a fim de poder retransmitir o noticiário daquele acontecimento desportivo" (ortografia actualizada).

Então, os horários de emissão de radiodifusão eram espartilhados - e, em caso de alterações, deviam ter aprovação do Estado. Curiosamente, os radioamadores (fonia e grafia) não tinham essa restrição. A qual surgiu em 1939. Mas essa história fica para outra vez.

Créditos: a António Silva (A Minha Rádio), por ter alojado as imagens no seu servidor, e à colega blogueira paulista já referida cinco dias atrás, pelo livro de Schmidt.

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