domingo, 25 de abril de 2004

A EXCEPÇÃO CULTURAL EM ESPANHA

A nova ministra espanhola da cultura, Carmen Calvo, prepara um projecto de lei para proteger as criações artísticas, escreve hoje Jesús Ruiz Mantilla, no El Pais. Apesar da Organização Mundial do Comércio (OMC) entender a cultura como uma qualquer indústria, sujeita à lei da oferta e da procura, o governo espanhol aposta numa filosofia oposta, considerando que a cultura não é um mero produto ou mercadoria, mas criação. É a essência da chamada excepção cultural.

A lei em preparação no país vizinho pretende ir além da actual consideração pela diversidade cultural, dominante na União Europeia. Ela envolverá os produtos audiovisuais, o mercado do livro e todas as artes. Objectivo: a diversidade e a sobrevivência das culturas alternativas face ao poderio das multinacionais do entretenimento. Para a ministra, deve proteger-se a cultura como um direito para todos e não como um mero objecto de consumo.

O termo excepção cultural foi adoptado por Jack Lang no tempo em que Mitterrand era chefe do governo em França, e traduziu-se num modelo restritivo para as majors, as grandes companhias de cinema de Hollywood. Lang adopta-o a partir de 1989, com a aceitação da directiva comunitária Televisão sem Fronteiras, a qual reconhece o direito de estabelecer quotas de produção nacional ou europeia dentro do espaço da União Europeia. Além disso, Lang idealizou uma rede de fundos regionais de arte contemporânea, potenciando a criatividade plástica. Consolidaram-se as ajudas à tradução, tanto de obras estrangeiras como do francês para outros idiomas. Por exemplo, o livro de um autor que eu aprecio imenso, Patrice Flichy (Une historie de la communication moderne - espace public et vie privée, 1991), viu a sua versão em língua inglesa no ano de 1995 (Dynamics of modern communication - the shaping and impact of new communication technologies), graças ao apoio financeiro do Ministério Francês da Cultura e da Francofonia.

Em 2001, as películas francesas tinham uma quota de mercado de 41,7% (em Espanha, a média de cinema do país ronda os 11,6%). Nos anos 1960 e em Espanha, havia mais de oito mil salas de cinema e 403 milhões de espectadores, números que baixaram para quatro mil salas e 140 milhões de espectadores nos nossos dias, segundo os dados publicados no livro La excepción cultural. El futuro del cine español, coordenado por Javier Maqua e editado pela Sociedad General de Autores y Editores e pela Fundación Autor.

A ministra Carmo Calvo estenderá o apoio para além das salas de cinema, o que levará o Estado até à produção e a uma regulação e controlo do que fazem as televisões. E ao livro, contemplando apoios aos pequenos livreiros, pequenas editoras e matérias de risco. Também a música ficará envolvida na excepção cultural, ainda que a situação não seja tão grave como no cinema.

O modelo francês da excepção cultural recebeu muitas críticas. Entre elas as de propiciar o clientelismo e uma cultura de apaniguados. Trata-se, pois, de uma cultura de Estado, aliás recorrente em França desde Luís XIV e que, mais recentemente, teve em De Gaulle um dos seus defensores, quando este criou um ministério da Cultura em 1959, nomeando-se o escritor André Malraux. À cultura de Estado, os liberais [enquadrados pela Organização Mundial do Comércio] respondem com a cultura do mercado. Mas nem sempre esta funciona bem, caso de países pequenos como Portugal. A criatividade e a produção artística necessitam de incentivos, dada a dimensão de mercados como o nosso. E vivemos uma época em que isso se sente muito. A discussão recente da lei do cinema e do audiovisual, que eu não dei o devido relevo a semana passada, esteve perpassada por esta dicotomia.

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