sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004

A CULTURA DA INDÚSTRIA

Foi este o título que João Mário Grilo, reconhecido cineasta e professor universitário, deu na sua coluna semanal da revista Visão, no passado dia 12 de Fevereiro. A propósito de duas ocorrências: a) a apresentação do projecto de lei sobre a criação de um Fundo de Investimento e Desenvolvimento das Artes Cinematográficas e do Audiovisual; b) a edição recente, pela editora Angelus Novus, de uma colectânea de textos de Theodor Adorno sobre a crítica das indústrias culturais.

O texto de J. M. Grilo está escrito com muita elegância e precisão. Ele referencia alguns dos comentários de Theodor Adorno e conclui a sua peça com a seguinte afirmação: “O que equivale a dizer que a indústria cultural não é nenhuma realização (natural) da cultura na idade industrial, mas a sua pura e simples expropriação; a possibilidade de inscrever, nas designações ocas de arte e cultura, a mediocridade dos ciclos de produção e consumo. Na indústria cultural e nesse perverso jogo de ilusões, a arte dilui-se na vida para que a obra se converta no «produto» que apenas a promete e simula”.

Será que algo está “a mudar no reino português das imagens em movimento”?
Eis a parte substancial do subtítulo do texto escrito nas páginas seguintes da mesma edição da Visão, de autoria da jornalista Sara Belo Luís, ao mesmo assunto do diploma das artes cinematográficas e do audiovisual. O qual contém elementos interessantes para uma análise das indústrias culturais – o tema nuclear do blog.

O projecto de lei que institui o Fundo de Investimento e Desenvolvimento das Artes Cinematográficas e do Audiovisual (como já abordei neste sítio há dias atrás) prevê receitas vindas de operadores e distribuidores de televisão de pagamento (5% dos resultados líquidos) e dos distribuidores de cinema (um montante não inferior a 2%). Prevê ainda a participação de outras entidades com as quais se estabelecerão protocolos de investimento (a PT já assinou um protocolo nesse sentido, embora eu não saiba se na qualidade de detentora da rede de televisão por cabo, na de distribuidora de cinema ou na de outra entidade – por exemplo, a de produtora de conteúdos).

A peça de Sara Luís Belo dá conta dos interesses distintos dos vários players no terreno. Se um distribuidor (Castello Lopes) está contra (em causa um pagamento à cabeça pela distribuição), um produtor (Costa do Castelo) mostra contentamento pela reformulação do sector. Curiosas são, contudo, as posições de dois cineastas, a de António-Pedro Vasconcelos (presidente da Associação de Realizadores de Cinema e Audiovisuais), que entende ser “preciso acabar com a chantagem de que a indústria é dissociável da arte”, e a de J. M. Grilo (presidente da Associação Portuguesa de Realizadores), que pensa diferentemente, ao afirmar que “é preciso dizer onde é que está a arte do audiovisual. Não vejo nenhuma vantagem em que o cinema se articule com este tipo de negócio”. Dois cineastas, duas visões distintas. O que me faz levar ao texto do mesmo J. M. Grilo na mesma edição da revista que venho a citar.

Sobre as indústrias culturais
Na realidade, Adorno e o seu companheiro de exílio Horkheimer nomearam o conceito de indústria cultural no final dos anos de 1930. Fugidos da Alemanha, por serem judeus, encontraram um ambiente cultural nos Estados Unidos muito diverso da Europa central a que pertenciam. O jazz e o cinema eram as artes [ou indústrias culturais, se as quisermos classificar deste modo] mais desenvolvidas. Adorno e Horkheimer tinham uma vincada cultura clássica. Adorno era mesmo pianista, compositor e crítico musical, mas de música clássica, relevando muito embora os músicos dodecafónicos, com quem ele se dava muito bem. Importante salientar aqui é o choque dos dois alemães, provenientes da alta cultura (aristocrática ainda) europeia.

Os textos de Adorno agora compilados em português – o que é de saudar – pautam-se por esta dupla desconfiança: 1) estrangeiro, 2) mergulhado numa cultura etiquetada como sendo menor.

Ora, desde os anos de 1960, a análise das indústrias culturais alterou-se [sem contar com o belíssimo texto de Walter Benjamin sobre o cinema na era da reprodutibilidade técnica]. O primeiro foi Edgar Morin. Mas nos anos de 1980, outros franceses de envergadura deram uma interpretação mais coerente de indústrias culturais. Estou a pensar em Patrice Flichy e Bernard Miège [prometo escrever sobre eles uma outra ocasião, mas talvez noutro sítio que não este].

Em 2002, o inglês David Hesmondhalgh escreveu um importante texto chamado exactamente Cultural industries. Quase ao mesmo tempo, o espanhol Enrique Bustamante publicava o seu livro A economia da televisão, agora traduzido em português e já aqui referido. Seguindo de perto o basco Ramón Zallo, Bustamante escreve que o conceito de indústrias culturais se converteu “no núcleo central de uma teoria fecunda, sociológica e económica, orientada nestas últimas décadas para a compreensão da produção e consumo da cultura de massas. […] os produtos e serviços culturais são compostos por protótipos reprodutíveis, caracterizados por uma permanente renovação, de valorização aleatória (alto risco económico), com custos fixos elevados (a criação e fabricação do master) e custos variáveis baixos (a reprodução e distribuição)”.

Há, assim, duas visões do mundo das indústrias culturais, a de J. M. Grilo e a de E. Bustamante. Eu gosto mais da segunda, embora reconheça a potência da primeira. Aliás, alicerçada em textos recentes, como os de Andrew Beck (2003, Cultural work. Understanding the cultural industries, Routledge) e de Heinz Steinert (2003, Culture industry, Polity Press).

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